domingo, 7 de outubro de 2007

O Primeiro Passo - Parte I

Eu reconheço que o texto é meio longo, mas vale a pena... Na verdade é a primeira parte da estória que postei duas semans atrás (que está aí embaixo em algum lugar)... Críticas bem vindas... Obrigado!
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Frio, manhã enevoada, e uma chuva muito fina caindo, o que aumentava ainda mais a sensação de frio. Ele encontrava-se em meio a Vitarus, a grande floresta que circula Kelowin. Lugar de uma beleza própria, exótica e selvagem, uma mata fechada, mas que ele conhecia como as costas de sua mão. Ele está aqui novamente, como faz praticamente todos os dias, sempre buscando ervas, fungos, cogumelos, raízes e tudo mais que possa ajudá-lo em seu trabalho. A profissão de herborista não é a mais bem vista pelo povo, alguns o consideram um bruxo, outros duvidam de seus feitos, porém, para o herborista, nada disso merece atenção, seu prazer é manipular o que extrai da natureza a fim de dar nova forma a tudo: remédios, loções, tônicos, perfumes e até venenos... Tudo partindo de princípios naturais de combinação até alcançar os efeitos desejados.
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Ele encontra-se à sombra de um grande carvalho, em meio às raízes expostas da imensa árvore encontram-se os shojis, pequenos fungos usados em perfumes, que são um grande atrativo comercial. Enquanto coleta os ingredientes um pensamento que há muito lhe ronda: "Por quê?"... Não é de hoje que esta pergunta não sai de sua mente: "Por que estou fazendo isso?". Não que haja algo errado em sua profissão, mas os anos passam e continua a repetir o que a aprendera de seu pai. Sempre fora um jovem com pensamento distante, sempre prometendo a si mesmo que correria de Kelowin para um lugar distante, abriria novas portas, veria novos mundos. Mas não, ali estava ele, copiando os passos de seu falecido pai. Deste herdara o dom de manipular as dádivas da natureza e a sabedoria de julgamento, mas após a sua morte, viu que todos os seus sonhos de se tornar diferente foram abandonados. Justo agora que nenhuma família lhe restara, que ninguém poderia obstar suas escolhas, continuava pelo caminho que tinha jurado não seguir.
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Mas ele queria mais, queria fazer algo que lhe colocasse em contato com o mundo exterior e não o prendesse ao interior de seu laboratório. Queria ver pessoas que se inspirassem em seus feitos e não temessem suas conquistas. Queria a velocidade e queria o tempo, queria o breve e queria o impossível, queria sair e trilhar novos caminhos, mas ainda assim... ali continuava.
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Ainda em meio a seu trabalho de coleta, ele percebe que a névoa que quase permanentemente cobre Vitarus estava se dissipando, fenômeno quase absurdo para aquela hora da manhã, afinal, o sol mal havia nascido e a mata é famosa por estar sempre sob pesadas nuvens de chão. Ele ergue a cabeça tentando entender o que se passa, eis que há alguns passos de distância, menos de quinze, avista um vulto, algo parecido com uma pessoa. Imediatamente toma seu cajado em mãos, o apoio sempre usado em suas jornadas floresta adentro é sua única defesa neste momento, em todos estes anos nunca vira ninguém nessa parte da floresta, apenas herboristas se arriscavam a ir tão dentro da mata a estas horas da manhã e com a morte de seu pai, ele era o único herborista em Kelowin.
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Ele se abaixa, imagina que a pouca névoa que ainda resta e a capa que veste como proteção ao clima áspero possam ocultar sua presença, ainda assim, mantém os olhos fixos na figura não muito distante, imóvel e silencioso. Em sua observação percebe que a figura está por se aproximar, dando passos lentos e firmes, a cada passo do vulto, ele aperta mais seu cajado. Vê que figura encontra-se agora a menos de sete passos de sua posição, então, subitamente, como se fosse um espasmo do espírito jovem e aventureiro que um dia tivera ele grita com a voz meio trêmula: "QUEM ESTÁ AÍ?"...
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Por alguns momentos que pareciam beirar a eternidade um silêncio medonho cortou o frio ar de Vitarus, o estranho já se detivera imediatamente ao ouvir o manifesto, e agora parece observar aquele que questionou sua identidade, a névoa do local diminuiu muito, mas ainda assim, não se pode afirmar com certeza o que ele está vendo. Sem saber o que fazer, o herborista volta a ficar em pé, pode ver tem praticamente a mesma estatura do vulto, agora, um pouco mais confiante e usando um volume normal de voz questiona novamente a identidade do estranho, continua com o seu cajado em mãos caso tenha que usá-lo.
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Neste momento, a névoa que resta no ambiente desaparece, como se uma brisa morna tomasse conta do lugar e o herborista tem uma visão clara da figura que encontra-se a sua frente, ao observar os traços desta, uma incrível sensação de bem-estar toma conta de seu espírito. A figura se aproxima para menos de quatro passos dele, o que o faz sentir um misto de calma e insegurança diante da visão, é uma mulher... Mas não uma simples mulher, bem longe disto na verdade. Alta, esguia, a pele muito clara, os trajes de couro de animal típicos de uma viajante. "Mas o que um viajante faz em meio a Vivarus? Ainda mais uma mulher?"... Pergunta que parece não querer ser respondida, pois o herborista está totalmente imóvel, como se aquela figura que no momento mantem o olhar fixo para o chão o tivesse paralisado.
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Alguns instantes passam, ele retoma o controle de si, agora tranquilo afinal, é apenas uma mulher, mais calmo diz: "Posso ajudá-la?". Ao ouvir a pergunta, a viajante levanta a cabeça, e o herborista se espanta com o que vê, uma linda face por sobre o capuz, quase indescritível, os cabelos de um dourado celestial quase brancos e olhos de um azul profundo. Tal visão faz com que ele perca a noção do tempo e do espaço: "O que uma criatura de beleza quase desumana faz em meio a Vitarus?". Pensa, mas sente que as palavras querem sair de sua boca num salto.
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Ele não sabe quanto tempo passaram olhando um para o outro, apenas sente que não foi pouco. Mas enfim, como um raio de luz que adentra um quarto escuro ela diz: "Eu te procurava, Meron." O sangue parece congelar nas veias do herborista, perplexo, primeiro pela moça ter respondido a pergunta que lhe rondava as idéias, e depois, por saber seu nome, coisa que a maioria do povo de Kelowin devia desconhecer, para a cidade, ele era apenas 'herborista'. Com o estalar de um galho sob seus pés ele volta a consciência plena, recomposto, volta a apertar o cajado em suas mãos e pergunta: "Como sabe meu nome? E se me procura, em que posso ser útil?"
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A moça que mantem o olhar fixo nos olhos de Meron responde após alguns instantes: "Sei muito sobre você, herborista. Sei que continua o trabalho de teu pai, sei que isso não satisfaz teu coração, sei que grandes sonhos açoitam teu sono, sei que nunca usou este cajado contra ninguém e sei que está se perguntando como eu sei de tudo isto...". Após ouvir a doce voz terminar de pronunciar estas palavras, ele sente seu coração prestes a arrebentar-lhe o peito, o chão desaparece e em seu último esforço para conter a vontade desesperada de fugir, ergue o cajado a sua frente e diz: "Quem é você? Uma bruxa? Desapareça daqui feiticeira!!! Por acaso lançou um feitiço em mim???"
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A moça continua com o olhar fixo em Meron, mas agora um sorriso lhe contorna os lábios, um sorriso que se transforma em um riso leve e tranquilizante, capaz até de tranquilizar o herborista, enfim diz: "Acalme-se senhor das ervas, não sou bruxa, muito menos lhe desejo qualquer mal. Aliás, diz-se pelo Sarien que os bruxos são vocês, herboristas! Agora, baixe esta arma pois bem sabe que pode acabar machucando a ti mesmo com ele, e deixe-me explicar o que me trouxe aqui..."
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O herborista fica sem ação, reflete repetidamente, o que poderia essa mulher fazer contra ele, a tranquilidade que paira no ar o convence a baixar o cajado e se determina a ouvir as explicações da moça.

(...) Continua...